Manhã de 1º de maio de 1994. Como mandava o protocolo de milhares de brasileiros, era hora de esperar o almoço dominical tendo como aperitivo mais uma vitória de um piloto brasileiro. O ritual foi aprendido após as conquistas de Emerson Fittipaldi e Nelson Piquet e foi sacralizado com a era Senna.
Naquele dia, o maior ídolo voltava com força. Embora os dois últimos anos tivessem sido sofridos e com conquistas escassas, Ayrton Senna acenava com uma temporada gloriosa. O tricampeão mundial estava na toda-poderosa Williams. As corridas no Brasil e em Aida, no Japão, foram decepcionantes. Mas agora era a hora de vencer novamente.
Nove horas da manhã. Quem gostava de F-1 e de Senna, já estava em frente à TV naquela manhã, um feriado desperdiçado, caindo em pleno domingo, mas que teria como possível compensação a vitória de Senna e a volta do hino brasileiro. Só era preciso esperar uma hora e meia, para que Senna levasse seu carro da primeira à última volta do GP de San Marino.O grave acidente que feriu Rubens Barrichello e a batida fatal de Roland Ratzenberger nos dias precedentes podiam estar em mente, mas Senna parecia inatingível.
A largada foi conturbada. Batida e largada suspensa. Senna seguia na ponta, era o que importava. Com o safety car na pista, Schumacher colado na traseira da Williams do brasileiro. Senna ainda liderava. Que orgulho, um brasileiro em primeiro lugar. A seleção não vencia uma Copa do Mundo havia 24 anos: a F-1 era a única esperança.
Nove horas e doze minutos, horário de Brasília. O carro do brasileiro escapa e bate com força no muro ao lado da área de escape da curva Tamburello. O piloto, que tinha virado nome de curva (o "S" do Senna, em Interlagos), morreria em outra curva, Tamburello, que tragicamente entraria para o vocabulário popular.
Segundos depois, Senna mexe a cabeça uma vez e outra, mas não se levanta. As imagens de TV mostram uma mancha de sangue. As ambulâncias e o atendimento demoram a chegar ao local e logo cobrem com um pano a cabeça de Senna.
Nove horas e trinta e três minutos. O piloto é levado de helicóptero. O acidente foi gravíssimo, era a certeza de todos. A corrida, que seguia, virou secundária. A notícia do estado de saúde era o que interessava. O almoço seria de apreensão, enquanto a TV falava de termos médicos: concussão, traqueostomia, ventilação artificial, afundamento do frontal, ruptura da artéria temporal, traumatismo craniano, choque hemorrágico, coma profundo.
A prova continuava, e Senna estava no Hospital Maggiore, de Bolonha. Schumacher vencera, mas não comemorara. Começam as especulações. Se Senna vivesse, ficaria para sempre em uma cadeira de rodas? Ele vai viver, mas vai nos deixar sem as vitórias. Tudo bem, mas ele vai viver. Vai ensinar alguém a correr como ele. E se ele ficar inconsciente para sempre, em eterno coma? Não havia tempo para se elaborar hipóteses. Era pouco mais de 13h quando a TV despejava mais um termo: morte cerebral. O Brasil terminou de almoçar, em silêncio. Uma hora mais tarde, os médicos do hospital italiano deram a notícia. "Morreu Ayrton Senna da Silva".
A rodada do futebol, segunda parte do roteiro-padrão dominical, mostraria os primeiros sinais de comoção coletiva do povo. Palmeiras x São Paulo, Flamengo x Vasco, Atlético-MG x Cruzeiro, Sport x Santa Cruz: todos jogaram ao som de "olê, olê, olê, olâ, Senna, Senna". O presidente Itamar Franco decreta, ainda no domingo, três dias de luto oficial.
O corpo deixa a Itália apenas no fim da tarde de quarta-feira, em caixão fechado. Quinta-feira, cinco horas da manhã, o MD-11 da Varig, que fez o vôo RG723, chega a Guarulhos. O Brasil recebe o corpo do herói com todas as formas de honrá-lo possíveis. Soldados da polícia da aeronáutica carregam o esquife do avião até o solo brasileiro. O corpo é depois transportado por cadetes da Escola da Polícia Militar até o carro de bombeiros que o levaria à Assembléia Legislativa, no bairro paulistano do Ibirapuera.
O cortejo, de pouco mais de 30 quilômetros, é acompanhado por cerca de 300 mil pessoas nas ruas de São Paulo, e transmitido pela televisão. Na Assembléia Legislativa, o velório têm sessões para a família e amigos pessoais, para pilotos e celebridades e, a mais movimentada, para o povo. Com uma fila de quase oito quilômetros, cerca de 200 mil pessoas prestaram homenagem ao piloto.
O caixão, coberto com a bandeira do Brasil e o capacete de Senna, deixaria o velório na sexta-feira, depois de ser visitado por pilotos, ex-pilotos e dirigentes como Emerson Fittipaldi, Gerhard Berger, Frank Williams, Ron Dennis, Rubens Barrichello, Roberto Pupo Moreno, Jackie Stewart, Johnny Herbert, Michele Alboreto, Damon Hill, entre outros, além de celebridades, como as ex-namoradas Adriane Galisteu e Xuxa Meneghel, a apresentadora Hebe Camargo, o radialista Osmar Santos e os políticos no poder na época: o prefeito Paulo Maluf, o governador Luis Antônio Fleury e o presidente Itamar Franco.
Depois das salvas de tiros de fuzil e canhão, o corpo de Senna foi levado novamente em um carro de bombeiros para o Cemitério do Morumbi. Os colegas pilotos ajudaram a carregar o caixão para a sepultura. Pouco antes das 13h, Senna era enterrado, não antes da última homenagem: a Esquadrilha da Fumaça desenhava, num céu azul de São Paulo, um coração com o "S" de Senna. O local de sepultura, em meio a um gramado, vira local de peregrinação e culto de brasileiros e estrangeiros que veneram o piloto.
* Texto publicado originalmente no décimo ano da morte de Senna
Leopoldo Godoy*
Em São Paulo Fonte:UOL
Nenhum comentário:
Postar um comentário