domingo, 18 de janeiro de 2009

Astrojildo Pereira e a gênese do comunismo no Brasil

Há 40 anos morria um dos principais responsáveis pela fundação do Partido Comunista do Brasil, Astrojildo Pereira. Entre 1922 e 1930 ele foi o secretário-geral da nova organização. Tarefa que realizou com dedicação e com relativo sucesso. Mas, as disputas políticas que abalaram o movimento comunista em nosso país levaram a uma minimização do seu papel. Esse artigo visa resgatar um pouco o papel desempenhado por Astrojildo Pereira na história da luta pelo socialismo no país.
Astrojildo nasceu em 1890 no pequeno município de Rio Bonito (RJ). Ainda adolescente mudou-se para Niterói e estudou no Colégio Anchieta, dirigido por rígidos jesuítas. Depois se transferiu para o Colégio Abílio. Aos quatorze anos pensou em tornar-se frade e aos quinze, já decepcionado com a igreja, começou a abraçar o ateísmo. Nesse mesmo período abandonou o colégio. Sem religião e sem escola, tornou-se um autodidata.
Podemos dizer que Astrojildo entrou na história do Brasil pelas mãos do autor de Os Sertões, Euclides da Cunha. Este, num artigo tratando das últimas horas do grande romancista brasileiro Machado de Assis, escreveu:
“Ouviram-se tímidas pancadas na porta principal da entrada. Abriram-na. Apareceu um desconhecido, um adolescente de dezesseis ou dezoito anos no máximo (...) Ninguém o conhecia, não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam (...) E o anônimo jovem – vindo de noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial (...) Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu (...) Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca subirá tanto na vida. Naquele meio segundo (...) aquele menino foi o maior homem de sua terra”. Mais tarde seria revelado que aquele adolescente anônimo era Astrojildo Pereira.
O seu primeiro envolvimento com a luta política se deu durante a “campanha civilista”, ocorrida em 1910, que tentava levar Ruy Barbosa à presidência da República. A vitória do Marechal Hermes da Fonseca o decepcionou profundamente. No mesmo ano um outro acontecimento contribuiu para dar novo rumo à sua vida: a revolta da Chibata. O desencanto com a religião e a educação formal transbordaria agora para o desencanto com o regime liberal-oligárquico e com o próprio capitalismo. Assim, estava semeado o terreno no qual brotaria as novas idéias libertárias.
Certo dia seu pai lhe trouxe jornais e folhetos anarquistas que passou a devorar com sua curiosidade juvenil. Anti-religiosa, anti-oligárquica e anti-capitalista, a ideologia anarquista se encaixava como uma luva às novas preocupações do jovem Astrojildo. Num desses jornais achou o endereço de um Centro Anarquista e foi conhecê-lo. Assim tiveram início seus primeiros contatos – ainda tímidos – com o movimento operário e anarquista brasileiro.
Em 1911 seguiu para a França, onde pretendia trabalhar e estudar. A aventura foi um desastre. Sem dinheiro e sem ter como sobreviver num país estranho, acabou tendo que ser ajudado por um grupo de brasileiros que vivia na Europa. A viagem somente não foi um desastre completo porque conseguiu trazer na bagagem um bom número de publicações libertárias. Iniciou-se uma nova fase de sua vida: a de líder anarquista. Dois anos depois, em 1913, estaria entre os organizadores do 2º Congresso Operário Brasileiro.
O ano de 1917 foi de fundamental importância na vida de Astrojildo e para as opções estratégicas que ele estaria por fazer. Naquele ano ocorreram importantes greves operárias, a principal foi a de São Paulo. Na Rússia, em novembro, eclodiu uma revolução socialista que teria um grande impacto em todo o mundo.
Astrojildo foi um dos militantes anarquistas mais entusiasmados com o feito dos operários russos, dirigidos pelos bolcheviques, e logo se transformou no principal propagandista da revolução russa entre nós. Escreveu inúmeros artigos desmentindo as calúnias divulgadas pela imprensa burguesa. Esse contato com os acontecimentos russos o levaria a ter que ajustar conta com sua consciência ainda anarquista.
O exemplo da revolução russa povoava a cabeça de nossas lideranças operárias. A greve geral de São Paulo parecia ter sido apenas o ensaio-geral de um movimento mais amplo e radical. Dentro desse espírito, em 1918, os anarquistas do Rio de Janeiro planejaram realizar um levante operário e popular. O complô foi descoberto e Astrojildo Pereira acabou sendo preso.
A confusão política e ideológica era tão grande que as lideranças operárias anarquistas resolveram realizar um congresso para fundar um Partido Comunista. Desta insólita reunião, realizada em 1919, participaram representantes de cinco estados brasileiros. Esta foi mais uma demonstração do impacto causado pela revolução russa nas fileiras proletárias. O engano logo foi descoberto e o partido se desfez.
Justamente naquele ano os anarquistas começaram a romper a frente-única mundial em torno da defesa da Revolução Russa. Os artigos contra Lênin e os bolcheviques se multiplicavam na imprensa libertária. Isso desagradou profundamente Astrojildo e inúmeros líderes operários. Entre o anarquismo e a revolução russa, ficavam com a segunda. Assim, uma cisão no movimento operário brasileiro era inevitável.
Os defensores da revolução bolchevique empreenderam um esforço gigantesco para organizar um verdadeiro Partido Comunista no Brasil e, no dia 7 de novembro de 1921, fundaram o Grupo Comunista no Rio de Janeiro, integrado inicialmente por 12 pessoas. Este pequeno agrupamento de revolucionários conseguiu a façanha de lançar dois meses depois uma revista intitulada Movimento Comunista.
O próximo passo foi tentar reunir os representantes dos diversos grupos comunistas que existiam espalhados pelo país e constituir um partido unificado, vinculado a 3ª Internacional. O esforço foi vitorioso. No dia 25 de março de 1922 teve início o congresso de fundação do PC do Brasil. Participaram nove delegados representando apenas 73 comunistas. Um começo modesto, mas bastante promissor.
Embora fosse o principal expoente da nova organização, Astrojildo defendeu que a secretaria-geral fosse ocupada por Abílio Nequete, representante do primeiro núcleo comunista brasileiro – a União Maximalista de Porto Alegre - e que tinha relação com os membros da Internacional Comunista no Uruguai. Além disso, Nequete era um dos poucos que não vinham das fileiras anarquistas. Naquele momento tal condição pesava-lhe favoravelmente.
O Partido Comunista gozou de poucos meses de vida legal. Em julho, após o levante do Forte de Copacabana, foi decretado o Estado de Sítio e ele acabou sendo colocado na ilegalidade. Nequete foi preso, espancado e se afastou da secretaria-geral. Astrojildo assumiu o cargo no qual permaneceu até 1930. Caberia a ele comandar o Partido Comunista durante os heróicos anos de sua formação. Esteve à frente dos quatro primeiros congressos, que se realizaram num prazo de menos de 10 anos - uma verdadeira façanha da democracia partidária. Segundo vários depoimentos, Astrojildo foi um dirigente democrático e que respeitava seus camaradas.
Em 1924 o PCB enviou-o para Moscou com o objetivo de participar do V Congresso da Internacional Comunista e conseguir o reconhecimento do partido brasileiro como membro efetivo daquela organização. A missão foi vitoriosa, o que permitiu que o Partido Comunista pudesse ostentar o honroso título de “seção brasileira da Internacional Comunista”. Voltando ao país dedicou-se a criação do jornal A Classe Operária, lançado em maio de 1925.
Antes de partir para Moscou ele havia articulado uma aliança dos comunistas com a Confederação-Cooperativista Brasileira – de caráter reformista – o que permitiu ao PCB ocupar um espaço permanente num jornal de grande circulação: O Paiz. Através da seção intitulada “No meio operário”, Astrojildo publicou suas Cartas da Rússia, correspondências enviadas quando estava em Moscou. O acordo, bastante criticado pelos anarquistas, foi amplamente favorável ao Partido naqueles primeiros anos, ajudando a colocá-lo fora do gueto político e social.
Astrojildo também foi um dos responsáveis pelo acordo com o líder socialista-positivista Leônidas de Rezende, que deu aos comunistas a direção do jornal A Nação, em janeiro de 1927. Pela primeira vez os comunistas tinham sob sua influência um jornal diário e de grande circulação. Nele, por exemplo, foi lançado o apelo à formação do Bloco Operário (depois Intitulado Bloco Operário e Camponês – BOC) - a primeira tentativa de organização de uma frente-única operária e socialista para concorrer às eleições no país.
No final daquele ano ele esteve com Luís Carlos Prestes – o legendário comandante da Coluna, alcunhado de “cavaleiro de esperança” – no seu exílio boliviano e entregou-lhe documentos do PCB e livros marxistas. Tornou-se, ao lado de Octávio Brandão, defensor ardoroso de uma aliança estratégica com a pequena-burguesia revolucionária.
Astrojildo e Brandão defenderam a tese que a revolução brasileira seria democrática pequeno-burguesa – devido à destacada participação política das classes médias urbanas. Acreditavam que ocorreria uma terceira revolta tenentista – as duas primeiras foram a de 1922 e 1924. Brandão escreveu: “Se os revoltosos pequeno-burgueses souberem explorar a rivalidade imperialista anglo-americana e a luta entre os agrários e os industriais, se procurarem uma base de classe para a sua ação, se o proletariado entrar na batalha e se essas contradições coincidirem com a luta presidencial e as complicações financeiras, será possível o esmagamento dos agrários”. Esta era quase uma premonição do que ocorreria em 1930.
No início de 1929, eleito para direção da Internacional Comunista, partiu para Moscou e ali trabalhou no Secretariado para a América Latina. Chegou na “Meca do socialismo” num momento que o movimento comunista pendia perigosamente para a esquerda. Ao lado do esquerdismo começavam a predominar práticas autoritárias e sectárias – a política leninista de proletarização se transformava em “obrerismo”.
Foi nesse ambiente, marcado pela intolerância, que foram analisadas a tática e a estratégia dos comunistas brasileiros. Suas teses foram duramente criticadas e consideradas mencheviques. Astrojildo teve que voltar ao Brasil com a missão de corrigir os rumos do Partido e adequá-lo às novas diretivas da Internacional Comunista. O primeiro passo foi afastar do secretariado vários dirigentes importantes - como Paulo de Lacerda, Octávio Brandão e Leôncio Basbaum –, sob argumentação de que eram intelectuais e tentarem obstruir o processo de proletarização.
Na Conferência de Partidos Comunistas da América do Sul, realizada entre abril e maio de 1930, os dirigentes brasileiros foram novamente acusados de tentar subordinar o proletariado à pequena-burguesia e de procurar dissolver o Partido Comunista no Bloco Operário e Camponês, considerado o Kuomitang brasileiro. Uma gravíssima acusação, após os trágicos acontecimentos chineses.
O esquerdismo e o obreirismo, incentivados pelo Secretariado Latino-Americano da IC., passaram a imperar no interior do PCB. Abandonou-se a proposta de aliança preferencial com a pequena-burguesia urbana, através do movimento tenentista, e fechou-se o Bloco Operário e Camponês. As reflexões originais sobre a formação econômica e social brasileira foram abandonadas e substituídas por esquemas e modelos mais rígidos produzidos no exterior. As posições recém adotadas pelo PCB, levaram que ele ficasse fora do grande movimento cívico-militar que culminou na revolução de 1930.
Após a reunião de Buenos Aires, Octávio Brandão foi afastado do Comitê Central e Astrojildo Pereira destituído da secretaria-geral e enviado para São Paulo, onde deveria se reabilitar através do trabalho nas bases partidárias. Nos meses que se seguiram uma avalanche de acusações recaiu sobre ele. Antes que fosse expulso, bastante deprimido, solicitou seu afastamento do Partido que ajudara a fundar. O PCB mergulhou numa profunda crise de direção. Nos quatro anos que se seguiriam à destituição de Astrojildo o PCB teve seis secretários-gerais.
Entre os anos de 1931 e 1945, afastado do PCB, tornou-se comerciante de frutas no Rio de Janeiro e escreveu artigos de críticas literárias para o Diário de Notícias. Esta atividade o mantinha em contato com a nata da cultura brasileira daquele tempo. Relações que, no futuro, seriam muito úteis ao partido comunista.
Mesmo longe do Partido, continuou sendo um ardoroso defensor da União Soviética e do PCB. Num texto de 1934 escreveu: “Na situação brasileira atual (...) só há um caminho de salvação para as massas operárias e camponesas. È o caminho que indicado pelo Partido Comunista”. No seu exílio interno ainda publicou várias coletâneas de artigos, como URSS, Itália, Brasil (1935) e Interpretações (1944). Neste último livro seria publicado o importante artigo “Posições e tarefas da inteligência”.
No entanto, o “astrojildismo” continuou sendo sinônimo de revisionismo brasileiro. No relatório da direção do PCB ao VII Congresso da Internacional ainda podia se ler sobre “a enérgica luta (travada pelo Partido) contra a pobre linha menchevista de seu antigo secretário-geral, o renegado Astrojildo Pereira”. Este era o último suspiro de uma política sectária que aquele congresso internacional iria sepultar, pelo menos por alguns anos.
A vitória sobre o nazi-fascismo criou um novo ambiente político. Vários antigos militantes regressaram ao Partido, entre eles Astrojildo Pereira. Desde então se dedicou, fundamentalmente, a organizar o trabalho comunista entre os intelectuais. Foi diretor das revistas Literatura e Estudos Sociais e ajudou a organizar o Congresso que fundou a Associação Brasileira dos Escritores, da qual foi seu diretor.
Sendo o militante mais antigo coube a ele fazer a abertura do IV Congresso do PCB em 1954. Dois anos depois quando chegaram as notícias sobre o XX Congresso do PCUS – especialmente sobre o conteúdo do relatório “secreto” de Krushov, no qual revelava os crimes de Stalin – o movimento comunista no Brasil entrou numa profunda crise. Travou-se uma intensa luta política e ideológica em seu interior e inúmeros experientes dirigentes - como Amazonas, Grabóis e Arruda - foram afastados de seus postos.
Astrojildo teve uma posição bastante digna nesse debate acalorado não se utilizando dos anátemas muito comuns naquela época. Também não fugiu das suas responsabilidades enquanto militante comunista. Escreveu: “incluo-me, cem por cento, entre aqueles que mais entusiasticamente participaram do culto à personalidade de Stálin”.
Durante o período de crise, continuou seu trabalho incansável de organização da intelectualidade progressista. Em 1959 já havia lançado o seu principal trabalho de crítica literária, Machado de Assis. Entre1960 e 1961, manteve uma coluna sobre livros no semanário comunista Novos Rumos. Muitos desses artigos e notas seriam publicados em Crítica Impura (1963). Em 1961 sofreu um enfarte e foi se tratar na URSS.
No início de 1962, quando a crise interna teve seu desfecho com a cisão dos comunistas, Astrojildo optou por ficar com o grupo liderado por Prestes. No mesmo ano lançou o livro Formação do PCB – coletânea de artigos sobre os primeiros anos de vida do partido. Por longo tempo foi a principal referência bibliográfica sobre este período obscuro da história dos comunistas brasileiros.
Após o golpe militar de 1964, Astrojildo foi incluído em vários inquéritos policiais militares e passou a viver na semi-clandestinidade. Sua casa foi invadida e parte de seu rico arquivo pessoal saqueada. Em nove de outubro, aos setenta e quatro anos de idade, foi preso depois de se apresentar voluntariamente. Seu crime: ter ajudado fundar há mais de 40 anos o Partido Comunista do Brasil e ter tentado convencer Luís Carlos Prestes a ingressar nele. Realmente crimes muito sérios naqueles anos de obscurantismo.
Ficou cerca de três meses encarcerado, mas teve que ser libertado, pois seu estado de saúde agravou-se. Em maio de 1965 a Revista Civilização Brasileira publicou um dos seus últimos artigos – a primeira (e única) parte do que deveria ser sua biografia. A perseguição, os maus tratos, as notícias aterradoras de prisões de companheiros ajudaram a debilitar ainda mais seu frágil organismo e, no dia 20 de novembro, o coração do velho combatente deixou de bater.
Quando ainda era secretário-geral do Partido Comunista, respondendo a um jogo de perguntas e respostas, Astrojildo afirmou que a sua idéia de felicidade era “paixão amorosa e paixão política ao mesmo tempo. Um doce amor de mulher em meio a uma bravia luta política”. A sua grande paixão política foi o Partido que ajudou a fundar e a grande paixão amorosa foi Inez Dias, com quem casou no início da década de 1930.
No dia 21 de novembro, quando seu caixão descia ao túmulo, uma voz feminina – firme e decidida – foi ouvida: Viva Astrojildo Pereira! Naquele momento mágico, as suas duas paixões se fundiram - e se confundiram - com a bravia luta contra a opressão. Quarenta anos depois, os comunistas ainda ecoam o brado de Inez Dias e respondem: Viva o camarada Astrojildo! Viva o povo brasileiro! Matéria de AUGUSTO C. BUONICORE extraída de revista espaço academico.
Historiador, doutorando em Ciências Sociais/Unicamp, membro do Comitê Central do PC do Brasil, do conselho de redação das revistas Debate Sindical e Princípios, do conselho editorial da revista Crítica Marxista e diretor do Instituto Maurício Grabóis (IMG.

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